quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

A pena do meu Pai. Parte 4

A viagem ao Cáucaso, pela pena do meu Pai, que escreve muito melhor que a minha.
In: Jornal de Minde. Nov2012

É já ali…
ao dobrar da esquina


SINGULARIDADES DA ARMÉNIA
Na manhã de 11 de Julho, o 12º dia de viagem, e já com 7271 Kms andados, saí cedo da caravana improvisada. As melgas tinham-me azucrinado toda a noite e precisava de me coçar.
O dia anterior acabara mal. Pensávamos chegar a Yerevan, capital da Arménia, e descobrir um hotelzeco para tomar um bom banho. Da língua dos arménios não sabíamos nem uma palavra e os caracteres ninguém os entende, mas tínhamos esperança de encontrar o que se vê em muitos países – por debaixo do reclame na língua do país, a palavra Hotel, mais conhecida internacionalmente. 
Pois não senhor. O único “Hotel” que vimos era um daqueles que tem só um quarto e só uma cama…. e muitas figuras nuas pregadas na parede… O Ricardo, que entrou sozinho enquanto eu fiquei a guardar o carro, ainda quis saber o preço, mas a patroa perguntou se era só para uma hora. 
Com tanto percorrer ruas fez-se noite. Apercebemo-nos de que já estávamos a sair da cidade e que se via mal. Uma espreitadela, o carro não tinha médios – só um mínimo e máximos.
-Encosta aí, esquece o hotel e é aqui mesmo que ficamos. Uma noite não são noites! De manhã, depois de coçar as melgas e de uma higiene sumária, cuidámos de avaliar a situação. O GPS não funcionava desde que saíramos da Turquia e, com as voltas à noite, tínhamos perdido a orientação.  
Uns metros mais acima estava um motorista de táxi a lavar o carro.
-Boa ideia, com o mapa tentamos que ele perceba qual é a direcção que queremos seguir e que nos indique a melhor saída da cidade. Em último caso ele que vá à nossa frente!
O homem foi atencioso, percebeu rapidamente o nosso problema e fez-nos compreender que estávamos no sítio certo – era mesmo por ali que devíamos seguir.
-Que raio, é o homem que percebe o nosso mau inglês ou somos nós que falamos arménio sem saber? Talvez os leitores não saibam, mas o ponto mais conhecido da Arménia é… é o quê?
…é o Monte Ararat, é evidente, aquele aonde a Bíblia diz que encalhou a arca de Noé depois que as águas do dilúvio foram descendo…
…Vocês não acreditam nisto, pois não?
…pois olhem que o problema é muito mais complicado do que parece. Talvez eu tenha por aí espaço para escrever alguma coisa sobre essa matéria. Se não, fica para outra vez!
Para acabar com as dúvidas e termos a certeza de que o homem estava a falar a sério perguntámos:
-E o monte Ararat?
E não é que o homem nos faz entender que sigamos por aquela estrada, que, uns 500 metros mais adiante, já vemos o Monte Ararat?...
Meio convencidos, agradecemos, despedimo-nos como pudemos e o homem responde:
-Auf widersehen…
Aí, a nossa admiração foi ao rubro. Auf Widersehen é alemão e significa: Até à próxima! 
O homem certamente andou cá por estes lados e lá se apercebeu de que, mesmo não falando nós alemão, sempre devíamos entender melhor do que em arménio.
Umas centenas de metros mais adiante lá estava ao fundo o Monte Ararat. Tal qual como nas imagens que tínhamos visto na internet. O grande Ararat com os seus 5156 m de altura e, um pouco à esquerda, o pequeno Ararat que se fica pelos 3914. Estávamos longe, a uns bons 60 Kms, e não estava nos nossos planos chegarmos mais perto… mas não há dúvida de que é uma visão inconfundível. No meio do imenso planalto que é a Arménia destacam-se aqueles morros que, à distância a que estávamos, até parecem pequenos, coroados no pico pela brancura da neve eterna.
Encostámos a carrinha, saudámos o gigante e pedimos licença para o fotografar. Ele não respondeu nada. Ou só fala arménio ou então está tão farto de ser fotografado por máquinas do último modelo que nem dá pelos nossos equipamentos de bolso. Foi um fartote de fotografias, mas são todas iguais. Dum morro a 60 Kms de distância, com mais ou menos zoom, em automático ou manual, tudo o que se possa tentar não faz grande diferença.
Depois destas duas aventuras parecia que o dia estava ganho, mas muita coisa nos esperava ainda. Seguimos a rota que tínhamos planeado a caminho de Nagorno Karabach e ao princípio da tarde estávamos a chegar à capital do território que, além dos habitantes, ninguém conhece como país.
O nome significa qualquer coisa como Jardim montanhoso. Montanhoso é, de facto…jardim, bom, é muito verde, mas o caminho, subidas e descidas a pique, curvas e contracurvas a seguir umas às outras não dá para apreciar grande beleza. Mas a capital é bonita. Espreguiçando-se numa imensa colina voltada para o sol, avenidas largas à boa maneira soviética, árvores e jardins… claro que as traseiras escondem o que não se quer mostrar, mas aonde é que isso não acontece?
Deu para entender porque é que este povo rústico, montanheiro, perdido no cabo do mundo, num sítio aonde ninguém se atreve a chegar, se esforçou tanto para não ficar sujeito ao vizinho Azerbeijão aonde interesses alheios o tinham colocado desde os anos vinte do século passado. É que os habitantes são uma colónia de arménios que aqui se fixaram há um ror de séculos e em cada arménio se sente o orgulho de pertencer ao país que primeiro aceitou oficialmente o cristianismo, ainda antes do Imperador Constantino em Constantinopla. Segundo a tradição, o cristianismo chegou aqui pela palavra dos dois apóstolos S. Judas Tadeu e S. Bartolomeu. A nova religião seria oficialmente aceite em 301. Daí a igreja local intitular se Igreja Apostólica Arménia. Todos os vizinhos são muçulmanos, nomeadamente os azeris do Azerbeijão. Separados da Arménia já desde 1923 pela mão de Estaline, quando a URSS se dissolveu e o Azerbeijão reclamou a independência com base nas fronteiras estabelecidas por Estaline, estes arménios declararam não aceitar mais essa submissão ignóbil que os separava do seu povo, das suas raízes e da sua crença.
Pegaram em armas.
Um carro de combate estrategicamente colocado no alto dum morro lembra ainda hoje o esforço de guerra que fizeram até se negociar o cessar fogo. Nenhum país até hoje reconheceu a sua independência, nem sequer a Arménia, que, apesar de tudo, foi o único vizinho que manteve uma porta aberta para se poder entrar ou sair do território. Tal como os restantes arménios, emigram para todo o mundo à procura de trabalho. A passearem nas ruas da capital, num fim de tarde dum dia quente, são grupos e grupos de raparigas. Os rapazes seus amigos, ou irmãos ou namorados, estarão a pensar nelas, mas a muitos quilómetros de distância. Celebraram a sua independência com setecentos casamentos simultâneos. As fotos estão expostas num dos edifícios governamentais por onde passámos para nos carimbarem o documento que recebemos à entrada e entregámos à saída.

Estando fechada a fronteira do outro lado, através da qual poderíamos entrar no Azerbeijão, lá se foi a nossa hipótese de sair por aí, e, com mais uns 600 Km, seguir até Baku, nas margens do Mar Cáspio, a última fronteira dos sonhos do Ricardo.
-Deixa lá rapaz, algum dia terás tempo de cá voltar!
Regressámos à Arménia, mas logo adiante seguimos por outro caminho contando entrar no dia seguinte novamente na Geórgia e visitar a capital, Tbilisi! Tínhamos atingido o ponto mais longínquo da nossa viagem, estávamos a iniciar regresso.
Boa sorte “nagornocarabaquenses” e “auf widersehen” como se despediu o taxista na saída de Yerevan!
A Nogueira

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